_____________________________________________sanyo, sanyo_________________________________________________


Aos domingos de manhã, o nosso pai costumava montar um estúdio de rádio na sala de estar. vestia a pele de locutor e entrevistava os seus convidados. Trajávamos a  rigor para alegria do anfitrião e ouvintes, ainda que, naquele tempo, a emissão não fosse transmitida visualmente. Ambos, eu e o meu irmão, apessoados, invarialmente de pijama.  Tínhamos programa p/ memória futura. O pai dispunha o gravador, milimétrica e meticulosamente, como rigoroso engenheiro que era, no centro da mesa, a partir do qual irradiavam microfones e auscultadores - o de plástico colorido vermelho e amarelo berrante e piroso, adornado de auto-colantes perfumados com purpurinas era o meu - lembras-te, david?  Ali ficávamos, à conversa, os três: o meu irmão, eu e o meu pai, enquanto ia mexendo em papéis, metido na escrita, e nos dava corda. Sabíamos que trabalhava enquanto nos ocupava, libertando a minha minha mãe. nunca nos confessou se trabalhava enquanto o fazia, mas a verdade é que nos escutava e nós, eu e o meu irmão, duas crianças, ali ficávamos suspensos na solenidade daquele momento, à espera que o pai sentenciasse - «1, 2, 3: estamos no ar». Acreditávamos mesmo que estávamos no estúdio, tal como acreditávamos que as pedreiras da serra d' aire e candeeiros e a maceira lis serviam de cenário para as rodagens dos filmes westerns que víamos. Eu tinha um colete de pele, comprado na feira do ribatejo, com franjinhas debruadas, de gosto ultra duvidoso mas empoderado; o termómetro podia marcar 38º graus, mas se o percurso até à praia antevisse passagem pela maceira lis, os meus pais cuidariam de me informar, antecipadamente, não  fosse eu a joan crowford do meu próprio estilo. - colete-à-cowboy sobreposto à toilette de praia pontuada pelos óculos de sol sobrepujados pela rival minie nas extremidades - tínhamos duelo sequioso e mortal. Retomo a incursão radiofónica.   nas viagens a aveiro  e  sem que nos apercebêssemos, a nossa mãe metia a "dinâmica" - TDK que viria a desbobinar as nossas conversas domingueiras. O programa estava no ar.

[num dos muitos registos encontramos a bizarria do seguinte diálogo, programa, perdão  (sejamos realistas)]:

pai- bom dia,  caros ouvintes. nesta manhã, fazem-nos companhia a dona lara e o senhor david. estou muito grato pela vossa presença, aqui no estúdio da rádio comercial, sei que abdicaram de estar na galáxia do "tempo dos mais novos" para estarem connosco, com os ouvintes lá de casa. o seu irmão abana a cabeça e a dona lara...? está arrependida...? vejo-a muito calada.
lara- [risinho breve, seguido de silêncio]
david- está envergonhada.
pai- será porque mudámos de estúdio, preferia relatar o "bola branca"? 
lara- bola branca, terceira edição!
pai- muito bem. e quem vai jogar?
lara- a, a, a união de leiria - beira-mar, pai mas eu, eu, eu gosto de hoje. 
pai- muito bem, gostar de hoje.
david- diz, mana, diz a rádio
lara- curre necial.
pai- muito bem, ficamos felizes; estamos muito caladinhos e os senhores lá em casa ainda não vos conhecem - queiram apresentar-se, falem um pouco de vocês.
david- sou o david, ora bem..., meus senhores. tenho seis anos, o polí e esta é a minha irmã...
pai- a sua irmã [risos] que estava envergonhada, não é dona lara? fale-nos de si
lara- [respiração funda - risos]
david- a dona lara ainda é pequena, ora bem, ainda é bebé e eu sou mais velho. a lara tem umas bochechinhas redondinhas que parecem duas batatas e um nariz, assim, como uma cebola. ora bem, senhores ouvintes, é como a miss piggy.
lara- e tu pareces mais pareces o cocas, cocas...
pai- concorda com o seu irmão, dona lara? parece-lhe bem a descrição...? fale-nos de si
lara- o mano david sabe. tenho as bochechinhas redooooondas, como, como o mário sú ares, e o, e o, o cabelo como a maria de lurdes pintasilgo.
[risos]
pai- e cantar? sei que gosta muito de cantar
lara- não sei cantar...[voz triste]
david- canta mana, tu sabes..."milho verde, verde milho, ó milho verde..."
lara- ó má gi, ó má gi, amori e cantari
pai- a sua irmã é romântica
lara- ó má gi, ó má gi, amori e cantari ó má gi, ó má gi, amori e cantari ó má gi, ó má gi, amori e cantari ó má gi, ó má gi, amori e cantari ó má gi, ó má gi, amori e cantari ó má gi, ó má gi, amori e cantari ó má gi, ó má gi, amori e cantari ó má gi, ó má gi, amori e cantari ó má gi, ó má gi, amori e cantari ó má gi, ó má gi, amori e cantari ó má gi, ó má gi, amori e cantari ó má gi, ó má gi, amori e cantari ó má gi, ó má gi, amori e cantari ó má gi, ó má gi, amori e cantari.
[aparece a mãe e intervém]
mãe- a dona lara dá-me licença que me junte ao coro? o disco está riscado, filha:   «magic, oh, magic, c'è una musica strana, magic, oh, magic, vagamente italiana, magic, oh, magic, c'è una musica strana, magic, oh, magic, vagamente italiana , magic, oh, magic, c'è una musica strana, magic, oh, magic, vagamente italiana....»]
pai- já viu que duas, senhor david?
david- estamos tramados, não é pai?

                                                                                                                                                         ***                                                                                

                                                                                                                                                     🍊

                                                                                                                                  p/ os melhores do mundo

                                                                            Fernando Cabral de Sousa Vale Tenreiro e Maria Fernanda Cardal Dias de Aguiar     

                                                                                                                                               meus pais 





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